Turquesa
Majoritariamente exibindo árvores no início de seus crescimentos, os quadros portados como principal passatempo em todo o restaurante já não traziam a mesma beleza para Clara se comparado a quando ela chegara. Ela considerou observar as pessoas ao seu redor, mas ver o entretenimento alheio lhe dava mais tédio e resultava em certa inveja por ver todos os casais já com os pratos na mesa, rindo disfarçadamente para não atrair mais atenção do que suas roupas elegantes. Então, decidiu fazer o que qualquer jovem de sua geração faria. Pegou o celular da bolsa e não deu importância à possibilidade de ser vista como “abandonada”. No topo da tela, o nome “Cândido T” era seguido pela foto de um rapaz negro. A indecisão de Clara em apertar o botão esquerdo ou direito tomou conta de toda sua consciência.
Aff! Mais cinco minutos e eu saio como se nada tivesse acontecido! Bah! Eu poderia estar estudando pra prova de sexta nesse exato momento! Por que uma pessoa tem telefone se ela não usa pra atender chamadas, tche!? Nunca mais…
Mas seu fluxo de consciência foi interrompido pela voz suave do rapaz por quem ela tanto esperara.
Ele talvez parecesse ter 1,70 de altura. Ou 1,68? Quem sabe menos? Mas não importava! O que importava para Clara foi o abraço que recebeu. Ali, ele poderia ter 2 metros.
— Foi mal… O ônibus veio lotado e eu tive que esperar o outro passar, visse?! — contou o rapaz.
— Tudo bem! — Sorriu Clara.
— Tu tá aqui faz muito tempo? — perguntou o menino enquanto se ajeitava na cadeira e pegava o cardápio.
— Mas bem capaz! — disse Clara olhando para Cândido, que por sua vez, se mostrou confuso.
— “Claro que não!” Foi o que eu quis dizer… — explanou Clara ao rapaz, que agora não portava mais a cara de confuso.
— Cheguei há algum tempinho… — mentiu Clara enquanto ainda estava sendo levada pelo perfume do garoto.
— É a tua primeira vez aqui? — indagou Cândido.
— Ah, assim sim!
— Nem precisa ter medo! Acha que vou te raptar, é!?
E se eu quisesse que me raptasse? Ela pensou, mas não foi capaz de falar, já que aquela era a primeira impressão que causaria. Optou por um sorriso.
E então uma pessoa chegou até eles, bloqueando a visão de um quadro cuja arte exibia uma flor em seu nascimento que estava centralizado entre Clara e Cândido.
— Boa noite… Posso anotar o pedido de vocês? — Ela questionou docilmente enquanto pegava um bloco de notas de seu uniforme azul. De longe, a roupa parecia combinar fielmente àquele estabelecimento. De perto, essa teoria se confirmava.
— Sim! — disse Clara prontamente olhando para Cândido, dando indícios de que o perfume do rapaz ainda tinha efeito sobre si.
— Eu vou querer Carpaccio de polvo! — Ela disse por último.
— E o senhor? — perguntou a garçonete enquanto anotava o pedido de Clara.
— Traz um peixe qualquer, por favor! Ah! Suco de maracujá também!
E assim ela fez. Alguns minutos depois, eles já estavam saboreando os seus pedidos enquanto se conheciam melhor.
— Então… tu coloca o arroz por cima ou por baixo do feijão? — Cândido quebrou o silêncio enquanto comiam.
— Por cima, claro!
— Que decepção!
— Bah! Eu não acredito que tu coloca o arroz por baixo!
— Oxi! Claro que não! Eu coloco o arroz do lado do feijão!
E riram juntos.
— E de que parte do Nordeste tu é? — perguntou Clara.
— Oxente, meu sotaque continua tão forte assim, é?
— Mas bem capaz! Mas minha mãe é de lá também, então eu sei reconhecer alguns sonidos!
— Ah, é? Pois tente adivinhar de onde eu vim então!
— Vejamos… Bem, Bahia tu não é, né?!
— Oxe, e por que não?
— Bah! Porque minha mãe veio de lá, né?! Daí eu sei que esse sotaque não é de lá, tche!
— Então tá bom… E de onde eu vim então?
— Pernambuco?
— E não é que tu acertou mesmo?
— Ponto pra mim!
— Ah, buliçosa! — disse Cândido com os braços cruzados para Clara.
— É o quê que tu me chamou, guri?
— Mas rapaz… Tu sabe reconhecer sotaques, mas não dialetos, é?!
— Faz um tempo que não vou pra lá, né?!
— Buliçosa é a menina curiosa… Inquieta… Que gosta de se amostrar…
— Bah! Então quer dizer que eu sou amostrada?
— É você quem tá dizendo… — Cândido dizia, acompanhando o riso de Clara.
— Olha, sabia que tu poderia ser o meu experimento científico?
— Ah é?! E a madame estuda medicina, é?!
— Barbaridade! Claro que não! Mania besta que esse povo tem de achar que só médico faz ciência! — debochou Clara em um tom leve para que a mensagem chegasse aos ouvidos do receptor de forma suave. — Eu faço Letras!
— No caso, o trabalho seria para uma disciplina chamada Variação Linguística. — explicava Clara, retirando a face de interrogação que Cândido portava ao tentar conectar a si mesmo com o curso de Clara. — Daí, tu bem que poderia me ajudar em gírias pernambucanas enquanto eu te ajudo com expressões gaúchas, né?! Daí sai todo mundo ganhando!
— Bah! Mas é claro, tchê! — respondia Cândido, imitando o ritmo e sotaque de Clara.
E foi essa a típica conversa que tiveram antes de se despedirem do restaurante.
Clara se comprometeu a levar Cândido até o ponto de ônibus mais próximo para que ele pudesse voltar em segurança para casa.
Assim foram até chegar ao ponto. Clara encostou seu carro, e o único sonido existente naquele momento, além de transportes passando ao lado, era o ar condicionado refrescando todo o ambiente. Mas, ao invés de gelar o clima, o aparelho parecia tecer ondas abrasadoras, responsáveis por envolver os jovens ali dentro.
As luzes do semáforo mais próximo penetravam o para-brisa do carro, e assim refletiam sobre aquele casal. E espontaneamente, sem prestar atenção no tempo, eles passaram pelas três cores. Intensificaram os olhares incidentes nos dois mutuamente; chegaram mais perto; e finalmente entrelaçaram seus lábios pela primeira vez.
E isso se repetiu num período de sete semanas. Dentre todas as atividades desenvolvidas, passar o tempo comparando e aprendendo, um com outro, expressões e vocabulário de Pernambuco e Rio Grande do Sul era o que mais rendia risada entre os dois, o que prolongava e intensificava a ligação entre o casal. Até que Clara sentiu ser hora de mostrar seu afeto para além do conforto de seu carro.
Cândido seguiu a vontade da amada sem questionar, como um impulso. Analisando melhor, foi com um piscar os olhos que ele balançou a cabeça positivamente para Clara quando ela perguntou se ele gostaria de conhecer seus pais; logo depois, encontrava-se na porta daquela mansão, vestindo a roupa que usara no primeiro encontro com sua amada. Queria que a mesma sorte que o abençoou no encontro o acompanhasse naquela etapa também, impondo, ao macacão jeans, a responsabilidade por aquela luz.
Por que eu tô tão nervoso? Eu já fiz isso antes! A rotina é mais do mesmo: Eu cumprimento eles com um aperto de mão, dou “boa noite” olhando nos olhos dos dois… Pensava Cândido enquanto Clara pegava as chaves da propriedade. Faço Artes na mesma faculdade que a filha de vocês e faço uns trabalhos durante a tarde!
Quando Clara finalmente abriu a porta, Cândido descobriu a razão de seu desconforto.
Marsala
Na visão de Cândido, a propriedade dos pais de sua amada era o tipo de lugar que ele nunca imaginaria pôr os pés.
Um branco frio apossava-se de todo o interior da casa, sendo presente no sofá largo que devia acomodar todo o bairro, na luminária de coluna tripé que poderia gerar luz para todo o estado, no piso puro de porcelanato, e finalmente nas paredes, que reprimiam qualquer conspurcação que não fosse daquela cor. Um piano, apesar de seguir a cor predileta da família, conseguia se destacar no canto devido às suas proporções. A alguma distância, uma lareira, graças à sua timidez, conseguia se esconder em uma parede.
— Mãe! Pai! — gritou Clara. — Eles devem estar na sala de jantar! Vem! Por aqui!
Cândido a seguia ao mesmo tempo em que mexia no celular, fingindo não estar surpreso pelo fato da casa de sua amada possuir uma sala de jantar estruturada unicamente para jantar.
Ao chegar ao cômodo, Cândido descobriu não ser o único a usar o aparelho tecnológico. Seu sogro utilizava o celular na mesa, quando levantou a cabeça e uma de suas sobrancelhas para o pernambucano. O pai de Clara parecia ter visto um espectro no lugar de Cândido. Mas em vez de assombrado, o olhar opressor do homem era de análise. Porém, rapidamente voltou a checar o celular, como se a presença de Cândido não fizesse qualquer diferença por ali.
Ou esse cabra tá louco ou eu tô cheirando a merda que só a gota… Pensou Cândido.
— Mãe, pai, esse é o Cândido! — anunciou Clara.
— Oi, Cândido! Tudo bem? — disse a sogra sorridente enquanto se levantava para cumprimentar o rapaz.
— Tudo certo! Não precisa se preocupar comigo! — avisou Cândido, que não pôde sentir um sinal de conterraneidade regional no sotaque da sogra.
— Tche! Eu faço questão! Clara falou muito bem de ti! — replicou a sogra enquanto abraçava o rapaz, que nessa hora já tinha confirmado sua hipótese: A mulher morava há tanto tempo naquele lugar, que já tinha pegado o máximo possível de características do povo que ali residia.
A estatura baixa da sogra fez Cândido se abaixar para abraçá-la. Sua roupa branca fantasmagórica combinava com as vestimentas da filha e do marido; mas as pulseiras coloridas, além do lenço azul marinho que tampava grande parte da cabeleira, traziam uma explosão de barulho que Cândido logo reconheceu como artefatos nordestinos.
Enquanto isso, a presença do visitante permanecia invisível à vista do pai de Clara.
— Pai?! Não vai cumprimentar o Dido, tche!? — indagou Clara.
Eu não acredito que ela tornou público o apelido que ela usa quando estamos sozinhos, pensou ligeiramente Cândido.
Era a vez de Clara se sentir ignorada pelo pai.
— Clara, preciso que me acompanhe! — disse finalmente o sogro.
— E eu preciso que tu cumprimente o Cândido antes, tche! — respondeu Clara com serenidade.
— Não temos tempo pra isso! — O pai disse acidamente.
— Bah… Qual o problema dele? — Clara dirigiu a pergunta à mãe.
— Venha, guria! — ordenou o pai, abrindo a porta mais próxima e logo sendo seguido pela filha, que fechou a porta com raiva.
O ruído de porta sendo fechada agressivamente foi tudo o que restou para Cândido e sua sogra. Ela, notoriamente desconsertada, foi falar com ele.
— Perdão pela inconveniência do meu marido… Ele não tem andado muito bem nos últimos dias… Tu sabe… A crise tem nos afetado demais!
— Não, não… Claro! Entendo perfeitamente! — mentiu Cândido que, por mais que se esforçasse, não tinha ideia do motivo pelo qual seu sogro agiu de forma tão esquisita.
— Tu aceita um copo d’água? — perguntou a mãe de Clara.
— Ah, não! Mas brigado!
— Com licença! — disse a sogra docemente antes de entrar no mesmo lugar em que Clara e seu pai estavam.
— BAAAAH!!! Como pode ser tão sujo?! — Cândido pôde ouvir a voz de sua amada de uma forma que ainda não havia conhecido. Seja lá o que estavam discutindo, não deviam estar debatendo a previsão do tempo de amanhã ou o preço do chimarrão. No mínimo, a viagem de família para a Disney foi cancelada devido à crise. Será que eles terão que substituir o champanhe caro pelo vinho barato? Ou pior: teriam que começar a utilizar transporte público em vez de seus próprios carros? Não podendo saber a resposta, Cândido mirou sua atenção na casa e em sua decoração.
Julgando pelos quadros, podia-se jurar que naquela casa moravam personalidades bastante sentimentais. Por toda a parte da sala de jantar eram vistas pinturas de frutas vermelhas ainda nas árvores, ou quadros tendo a cor vermelha como destaque. Se tratando de um estudante de Artes, aqueles quadros remetiam, a Cândido fortaleza, explosão e agitação – substantivos que, embora abstratos, pareciam estar culminando no cômodo ao lado.
— EU NÃO PAGUEI TODOS TEUS INTERCÂMBIOS PRA EUROPA PRA QUE TU ACABASSE COM UM NEGUINHO QUE TU CONHECEU ONTEM! — berrou o pai de Clara.
— EU NÃO ACREDITO QUE NESSE TEMPO TODO TU ERA RACISTA E AINDA TEM A AUDÁCIA DE SE AUTO DECLARAR FILANTRÓPICO! — respondeu Clara com mais poder ainda.
De imediato, Cândido sentiu o suor de sua testa deslizar pelo nariz. Como se atacadas por uma enxada, suas pernas se contraíram a ponto de obrigá-lo a se segurar no móvel mais próximo. Qual havia sido a última vez que alguém fora racista com ele? Bem, de acordo com seus amigos, a última vez foi recente. Ele estava em uma loja de supermercados com seus amigos quando uma senhora se aproximou dele. Ela queria saber onde era a sessão de higiene. “Eu não sei, senhora…” respondeu polidamente. “Mas tu trabalha aqui, guri! Tu tem que saber!” Retrucou a senhora com desdém. “Eu não trabalho aqui, senhora…” Informou Cândido. A mulher então foi embora sem nenhuma outra palavra. “Mas é claro que ela foi racista!” Concordaram todos os amigos para quem Cândido relatou o caso. Contudo, ele discordou. Para ele, a velhinha só estava perdida. Para ele, o racismo o conheceu quando tinha 7 anos de idade; estava em um outro supermercado comprando balas quando foi acusado de ter roubado “coisas da loja”. Se sua mãe, branca, não estivesse ali, ele talvez pudesse ter sido levado. Nada como a acusação de roubo o havia deixado tão para baixo. Nada. Até o momento em que foi chamado de “neguinho que conheceu a namorada ontem”, quando, na verdade, eles já se encontravam por sete semanas.
Todo esse flashback foi quebrado pela mãe de Clara.
— Querido, acho melhor tu ir! Me fale teu endereço que eu te deixo em casa! — disse a mãe de Clara enquanto tocava as costas de Cândido.
— Querido?! — A voz da mulher ecoava no ouvido dele, mas Cândido estava incrédulo demais para responder alguma coisa.
— Querido?! Tu precisa ser forte para sobreviver ao frio daqui, visse? — Ela disse mais uma vez, quando Cândido finalmente pôde responder.
— Cascata.
— Isso é aqui em Poa?
Ele balançou a cabeça positivamente.
E assim foram da mansão até Cascata sem trocarem uma única palavra, a não ser pelas informações fornecidas por Cândido acerca da localização de seu lar.
Se não tivesse gostado tanto do caráter da mãe de Clara desde o início, ele poderia jurar que ela só o estava levando para casa com o anseio do seu marido ser denunciado.
— Perdão pela má impressão que a minha família te causou hoje… — lamentou a mulher quando o carro já estava o mais próximo possível da casa. — Se houvesse mais alguma chance, tu veria que não somos o que aparentamos ser durante o jantar!
— Tranquilo… — reagiu o rapaz enquanto abria a porta do carro.
Ele só pôde ouvir o barulho do carro de novo quando já estava dentro de casa.
Ao chegar em seu quarto, ele não teve outra reação a não ser se encarar no espelho. Ali, encarou um rapaz negro com alargador nas orelhas tirando seu macacão, revelando a camisa branca com estampa colorida que outrora estivera recôndita. Se deitou e objetivou dormir, como tentativa de apagar todas as cenas desagradáveis sofridas durante o encontro com o pai de Clara. Nunca apeteceu tanto não ouvir o alarme do dia seguinte. Mas a noite passou tão rápido que logo ele se encontrava de pé.
O dia foi produtivo o suficiente para que ele não tivesse oportunidade de pensar em qualquer cena da véspera. Além disso, seu celular também merecia créditos por tirá-lo do tédio ou ociosidade. Tudo isso se findou quando ele retornou à sua casa, ao ser surpreendido por uma mensagem de boa noite de Clara.
“Oiiii! Desculpa pelo meu pai tapado ontem…” Iniciava a comunicação.
“Fiquei louca quando ele começou a se portar como um jumento naquele nível!” continuava a mensagem.
“Espero que não esteja com raiva de mim… eu não tenho culpa de ter um boca aberta como pai!” Sete minutos depois, era essa a mensagem que chegava ao celular de Cândido.
“Tá aí?” E foi com essa última mensagem de Clara que Cândido decidiu respondê-la.
“Tô.”
Não satisfeita com a resposta, Clara ligou para Cândido, que hesitou em aceitar a ligação, mas por fim achou melhor se abrir para o diálogo. No final das contas, concordava com Clara de que ela não possuía culpa alguma por ter um pai babaca.
— EU SEI QUE EU PISEI NA BOLA EM TE LEVAR LÁ PRA CASA COM UM PAI NOJENTO IGUAL O MEU, MAS NÃO DESISTE DE MIM PELO AMOR DE DEUS! MAS ME TAPEI DE NOJO E DEI NOS DEDOS DAQUELE RETARDADO! — berrou Clara de uma só vez em menos de 7 segundos, indiretamente declarando que estava esperando que Cândido desligasse no primeiro “alô” que ele ouvisse. Ao contrário do barulho de uma ligação caída, ela ouviu um riso.
— Cândido!? — recomeçou Clara.
— Oi!?
— Não vai falar nada?
— Falar o que?
— Não sei… me chamar de tansa, idiota… sei lá! Como vocês chamam uma pessoa tapada mesmo? É tabacuda o nome?
— Eu vou te parafrasear dizendo que você não tem culpa de ter um pai babaca! — dizia Cândido enquanto se sentava em sua cama cujo colchão se enfeitava com um livro de capa colorida intitulado “A Psicologia das Cores”.
— Ainda bem que tu sabe! — dizia Clara. — Eu queria compensar a ignorância do meu pai com algo que tu gosta muito!
— Com o que? Torta de maçã?
— Exatamente! — respondeu Clara com um teor sensual. — Posso te pegar em 30 minutos?
— Até menos, se tu preferir!
Em frente à casa de Cândido, Clara estava encostada no carro vermelho com sua vestimenta setenta por cento violeta.
— Bah! Me abri pra ti mesmo, viu guri?! — disse Clara sorridente ao ver seu amado vestindo uma camisa roxa coberta por maçãs, morangos e cerejas em grande parte da estampa.
— E eu tô louco pra tu me mostrar a torta de maçã que tanto fala! — Cândido disse antes de beijá-la.
A curta viagem terminou em uma lanchonete predominantemente vermelha.
— Eu não acredito que tu vai realmente me dar torta de maçã!
— Tu achou mesmo que eu seria tão previsível assim? — perguntou Clara com um tom irônico.
Clara guiava o caminho, levando ambos a subirem as escadas do estabelecimento.
— Eu conheço um lugar ótimo pra gente passar a noite!
E assim, ela abriu a porta de um quarto. Os quadros, pendurados na parede, possuíam mulheres saboreando frutas vermelhas e roxas. Cândido chegou a acreditar que os quadros faziam parte da lanchonete para incentivar os clientes a saborearem suas comidas também; mas duvidou que as pétalas vermelhas, soltas sobre toda a cama, também induziam seus desfrutadores a comprar ainda mais comida.
— Gostou da torta de maçã? — perguntou Clara.
— Vai ficar melhor contigo em cima! — respondeu Cândido, agarrando Clara e jogando-a, sem esforço, na cama.
Ali, eles tiveram mais uma oportunidade de conhecer mais intensamente os lábios um do outro. Cândido estava com uma de suas mãos impossibilitada de se mexer por causa do braço por baixo de Clara, enquanto a outra acariciava o cabelo dela. A jovem, por sua vez, encostava suas mãos na cintura dele, tentando remover a sua camisa e, ao mesmo tempo, beijá-lo. Aquela intimidade, cultivada pela sintonia da respiração ofegante de ambos, também era responsável por fazê-los conhecer a verdadeira identidade de um e de outro. Naquele momento, eles não eram Clara e Cândido. Naquele momento, tornaram-se um só.
— Te quero! — Clara foi a primeira a adicionar outros sons. Cândido acompanhou o ritmo e atuou para que seus beijos sensíveis e demorados pudessem ser ouvidos ao se conectarem a todo o corpo de sua amada.
Assim passaram toda a madrugada: trocando toques e carinho um com o outro, seus corpos reproduzindo silhuetas, formadas pela luz violeta do abajur.
Até que o alarme afugentou todo o paraíso que haviam habitado juntos.
— Bom dia, mô! — desejou Cândido com voz rouca à Clara que, nesse momento, se espreguiçava.
— Bom dia. — respondeu Clara com a voz mais dura ainda.
— Pronta pra torta de maçã? Tô com o estômago colado nas costas! — informou Cândido com tom humorado.
Clara soltou um riso.
Como um único corpo, eles saíram da cama, tomaram banho, se ajeitaram e finalmente desceram para o café da manhã. O casal se sentou na primeira mesa vaga avistada, o que não foi muito difícil de conseguir, já que o movimento de manhã não estava nada intenso, se comparado à noite anterior.
— Eu tô morta de fome! — disse Clara ao se ajeitar à mesa.
— Bom dia. Como posso ajudá-los? — perguntou o garçom.
— Eu quero um misto quente, por favor! — respondeu Clara com precisão.
— E tu, guri? — perguntou o garçom, se dirigindo a Cândido.
— O mesmo, faz favor! — respondeu Cândido.
Assim que os pratos chegaram, Clara esboçou preocupação.
— Ai meu Deus!
— O que foi? O misto veio faltando presunto? — perguntou Cândido.
— O Afonso.
— Quem?
— O meu ex!
— Ah ta… E qual o motivo mesmo de você tá assim tão nervosa?
— Talvez porque não faz muito tempo que terminamos… — ironizava Clara. — Meu Deus… Ele tá vindo pra cá…
— Clara! Que coincidência te ver logo por aqui, guria! — disse Afonso, um rapaz da mesma mesura de Cândido, mas que, a julgar pela vestimenta, acessórios e bigode que portava, mostrava algumas diferenças drásticas quando comparado ao atual namorado de Clara.
Laranja
Ela seguiu fingindo que aquela era a primeira vez que tinha visto o ex ali.
— Pois é… E por incrível que pareça, é a primeira vez que volto aqui! — garantiu Clara, que conseguiu um riso de Afonso. — E tu? Estudando muito?
— Já tive semestres piores… E tu? — Devolveu a pergunta o rapaz, que ficou em pé todo este tempo.
— Tô ficando louca com esse final de semestre! — desabafou Clara, que dessa vez não pôde gerar uma reação verbal em seu interlocutor.
O silêncio naquele diálogo fez com que Cândido fosse notado. Ele estava comendo seu misto quente, ignorando a conversa entre Clara e Afonso até então.
— Ah, este é o Cândido! — anunciou Clara a Afonso, que agora estava olhando o atual de Clara.
— Bah! Prazer! Afonso! — Ofereceu a mão a Cândido, que logo pegou o guardanapo para limpar a sua a fim de apertar a de Afonso.
— O prazer é todo nosso, rapaz! Cândido! — disse o atual de Clara, certeiro e sorridente.
O silêncio voltou a reinar, levando Cândido a retornar ao seu sanduíche.
— Bem, eu vou indo porque tenho pacientes me esperando! — Afonso anunciou.
— Tchau! — Despediu-se Clara com um desengonçado aperto na mão de Afonso. Já Cândido continuou a comer seu misto quente, mas acenou para o novo conhecido.
— Gréia ele, visse?! — disse Cândido quando voltaram a ser ele e Clara na mesa.
— É… — concordou Clara, que já não fazia questão de entender todo o vocabulário de Cândido.
Ao lado daquele rapaz, ela se despediu da lanchonete sem ao menos tocar no misto que havia pedido. Passaram a viagem de carro sem qualquer fala, uma vez que Clara se concentrava no volante e Cândido parecia submerso em um universo paralelo criado em seu celular. Até que a casa do universitário se encontrava mais próxima possível deles, fazendo-os se comunicarem por meio de um beijo de despedida.
— Obrigado por tudo! Eita que eu tava com uma fome da bexiga lisa, visse?! — agradeceu Cândido antes de descer do veículo.
— É… Foi tri legal! — disse Clara olhando para ele. Ela esperou o rapaz entrar em sua residência para finalmente dar partida para o seu destino.
Quando a noite chegou e Cândido não havia recebido as mensagens de “boa tarde!” ou “boa noite!”, tradicionalmente oriundas de Clara, ele decidiu tomar iniciativa na criação do diálogo.
“Boa noite! Só agradecendo pela noite ótima que tu compartilhou comigo! Dá p acreditar que 24 horas atrás nós estávamos agarradinhos? Quero de novo o quanto antes”
Mas ele raciocinou que já era tarde demais para esperar qualquer mensagem naquele momento. Preferiu, então, dormir como receita para acordar com mensagens matinais de sua amada e finalmente começar o dia de forma alegre. Todavia, a madrugada se esvaiu sem que Cândido recebesse a mensagem esperada.
Ela deve estar dormindo ainda… Matutou Cândido antes de se levantar para mais um dia.
Sua rotina seguiu normalmente, até que a preocupação começou a rondar o seu interior, levando-o a ligar para Clara, que não aceitou a chamada.
“Oi… Estou atucanada com o final de semestre… Te ligo depois!” Clara comunicava. Entretanto, ela nunca retornou a chamada, justificando estar focada nos trabalhos acadêmicos. A mensagem que Cândido notava por meio de posts de Clara no instagram beirava a incoerência com a que ele recebera.
Cândido compreendeu. Para ele, algo estava errado. Talvez ele fosse mesmo o neguinho que Clara conheceu há pouquíssimo tempo, como o pai dela havia dito. Talvez ele não pertencesse, e nem poderia dar o mundo pelo qual Clara cresceu rodeada. Talvez se ele se esforçasse mais para se comunicar em gauchês, ela não ficaria tão confusa como ficava com qualquer frase que ele soltasse. Talvez aquele rapaz chamado Afonso pudesse oferecer tudo o que ele não podia. Talvez ela ainda estivesse balançada por Afonso a ponto de largar algo que estava crescendo pela volta do que provavelmente já foi gigante. Talvez a culpa tivesse sido dele próprio por não ter se tocado de primeira que Afonso seria um obstáculo para si. Talvez, se ele tivesse percebido, poderia ter lutado mais pela atenção de Clara. Talvez, talvez, talvez… Foram necessários muitos outros “talvez” antes dele decidir seguir a vida sem ter a resposta de todas as dúvidas e questionamentos que o cercavam naquele momento. Até que uma voz involuntária o perseguiu, persuadindo-o a mandar uma última mensagem, a fim de ter certeza se deveria seguir em frente com ou sem ela. Foi o único plano que conseguiu engendrar.
“E aí, guria? Só passando p perguntar se tem algo que nos impede de conversar…” Ele leu e releu a mensagem algumas vezes antes de finalmente apertar o botão de enviar.
Sete minutos depois, que mais pareciam uma eternidade do que sete minutos propriamente ditos, era a vez de receber a resposta.
“Ei… Não há nada que nos impeça de mandar mensagem um pro outro, mas devo te dizer que ainda estou balançada pelo meu ex e agora que há uma possibilidade de volta, sinto no meu direito de fazer essa possibilidade se tornar real.” respondia Clara.
Foi preciso coragem para entender o que aquela mensagem significava. Foi preciso empatia para responder tal mensagem com confiança. Ele não tinha nenhuma das duas coisas. Mas Cândido engoliu o nó que estava sufocando sua garganta, e resolveu acabar com a relação de forma amigável.
“Entendi… Felicidades pro casal! Tô torcendo por vocês então :D”
Cândido compreendeu. Não era algo que estava errado. Era alguém mal posicionado. E, por mais que se esforçasse para contrariar a voz de sua mente, que o classificava como a peça mal posicionada, não encontrou forças para superar a ideia.
Se deitou no chão de seu quarto cujas paredes eram todas pintadas de laranja, não na intenção de chorar, mas de ficar preso naquela dimensão por eras, até que todo o sentimento destinado a Clara fosse extinguido. Esse desejo foi atrapalhado pelo som vibrante do celular. Cândido pegou rapidamente o aparelho para ver a resposta de Clara para sua mensagem amigável. Porém, mais uma decepção… A mensagem não era de sua amada, mas, sim de um desconhecido qualquer em um destes aplicativos de celular.
Ele ficou deitado na mesma posição por horas, lembrando-se de todos os momentos que passou na presença de Clara e se lamentando não pelo o que eles tiveram, mas sim pelo o que poderiam ter construído juntos em um futuro. Aquela sensação de que havia perdido a pessoa ideal que sempre esteve a procurar queimava mais do que um toque inesperado em ferro quente, Cândido tinha certeza. Naquele momento, a frustração de não se visualizar com outra pessoa senão Clara o deixava com as pernas bambas. Passou a analisar cada mensagem que trocou com Clara e ficou mesmerizado com cada mentira que ela contou a ele. A pessoa que mandou a mensagem para ele, agradecendo pelo primeiro encontro, não era a mesma pessoa que o ignorou minutos atrás. Não era. Não podia ser. Mas ele mesmo não queria culpá-la; em seus momentos mais íntimos, ambos prometeram coisas sem consideração profunda, afinal.
Então se ergueu, indo em direção ao quadro apoiado em um cavalete, removendo, posteriormente, o véu que protegia a arte de poeira. Ali se encontrava um trabalho de longos meses. Tudo pronto para apresentar a técnica usada para retratar uma fotografia real por meio de óleo. Abraçados, os modelos exibiam, em suas peles, cores extremistas que se distinguiam quando comparadas um ao outro assim, de forma tão próxima. Os sorrisos, contudo, se harmonizavam com o mesmo tom genuíno e radiante. Os olhos de Clara fitavam o autor com tal intensidade que o fazia se esquecer de que aquilo se tratava de uma pintura, uma obra de sua cabeça. A percepção daquilo aqueceu o coração de Cândido, que havia criado uma perenidade, o registro de algo que ninguém seria capaz de apagar.
Mas, a mesma ideia que servia para acalmar o seu coração, quando evoluída por outra, o levou a atacar a arte que seria utilizada para obtenção de nota na faculdade e surpresa afetiva à amada.
A alguns quilômetros dali, Clara analisava as opções que lhe eram servidas. Apesar de ainda amar Afonso e ter a certeza de que poderiam reatar o namoro, ela ainda refletia se aquela relação seria, de fato, o seu melhor alvo para o presente e futuro. O namoro dos dois já havia sido arruinado antes pelas ações dos próprios envolvidos. O que impediria que ambas as partes cometessem os mesmos deslizes de outrora? E se mais uma vez eles falhassem? O que a sociedade cochicharia pelas suas costas toda vez que ela chegasse a algum lugar, caso eles rompessem novamente? Questionamentos caçavam Clara naquele momento em que tomar uma atitude era sua responsabilidade. Foi quando ela abriu a porta do seu quarto e se dirigiu às escadas.
— Sim! — disse Clara a Afonso, que estava na sala de estar conversando com seus então sogros. — Eu aceito voltar com você! — continuou Clara, fazendo seu pai comemorar.
Preto e Branco
Será que eles dormiram juntos nessa madrugada? Por que ela teve que desaparecer logo no final de semestre? Tudo estava tão perfeito antes dela aparecer… Por que ela teve mesmo que entrar na minha vida? Matutava Cândido enquanto abria os olhos, ignorando o barulho do alarme. Foda-se… Eu vou superar essa rapariga de qualquer jeito!
Apesar do dia ter nascido com nuvens cinzentas que ofuscavam o sol, Cândido decidiu começar o dia literalmente com o pé direito, sendo esta decisão seguida por ele entoando canções animadas no banho. Era o fim de semestre, e ele ainda tinha algumas pendências para finalizar na universidade. Lá, ele esteve presente com sua mente mais focada do que nos últimos dias em que aparecera deprimido no campus.
E no fim, finalmente a recompensa: foi aprovado em todas as matérias com média satisfatória.
É o que dizem… Sorte no jogo e azar no amor, né?! Ponderava Cândido enquanto retornava à sua casa, olhando para o nada através da janela do ônibus que ficaria sem pegar por alguns meses.
A noite trouxe consigo o convite da turma para comemorar o final de semestre no barzinho mais próximo da faculdade. Considerando a ideia, Cândido achou que a companhia de amigos pudesse findar, de uma vez, os pensamentos acerca do seu último affair.
E lá estava ele se divertindo quando, de repente, Clara emergia com sua beleza radiante.
Mas é claro… Como eu pude ser tão inocente? Todos os cursos da universidade devem estar comemorando o final de semestre aqui… Por que o curso dela seria diferente?
Para a surpresa de Cândido, quem o notou foi Afonso. Ele cutucou Clara para que o novo casal pudesse acenar para o pernambucano. Cândido acenou de volta, uma vez que não podia fingir que não havia os visto ali. Ele se empenhou em mostrar todo o brilho de seu sorriso, objetivando convencer todos os presentes no local de que tudo estava no passado.
— Galera, quê que vocês acham d’agente ir pra Espectro? — perguntou o colega mais próximo de Cândido.
— Eu topo! — disse uma colega aleatória, sendo seguida por todas as outras pessoas da mesa, com exceção de Cândido.
— Cândido?! — A pessoa ao lado do ex-namorado de Clara esperava a resposta.
— Vamos picar a mula desse lugar é agora! — garantiu o pernambucano antes de engolir uma grande quantidade de bebida.
O olhar de Clara, ao ver o grupo se levantar, acompanhou Cândido até a saída.
Classificado como “alternativo” pelos seus frequentadores, o Espectro era uma boate enorme com alguns cômodos nunca visitados por Cândido devido à sua ausência de curiosidade. Ele passou pela lanchonete do lugar, que exibia quadros considerados conceituais, mas que, naquele dia específico, expunha fotos de árvores cortadas, mostrando suas raízes com a aparência de terem sido fotografadas logo após um catastrófico incêndio. Cândido não entendeu o motivo do estabelecimento portar fotos de cinzas como passatempo para os clientes, mas conectou a presença de cinzas a uma possível ação de conscientização. No bar ao lado da pista de dança, um globo espetacular gigante lançava múltiplas rajadas de cores nas pessoas.
A despeito do efeito artístico que a os reflexos coloridos causava nos presentes, Cândido voltou a utilizar o único instrumento que nunca o abandonava. Objetivando romper sua rotina, ele pediu, ao barman, a bebida mais forte que o lugar tinha a oferecer. Foi neste momento que deu de cara com o pai de Clara sentado no bar, também mexendo no seu celular, ao mesmo tempo em que conversava com um rapaz aparentemente na mesma faixa-etária de Cândido e Clara, ou mais novo. A conversa entre os dois homens transpirava amabilidade, dado que era a primeira vez que Cândido via o pai de Clara sorrir de forma tão expansiva. Cândido preferiu dar prioridade ao seu aparelho tecnológico a ter que cumprimentar um velho ignorante racista. E a surpresa da noite veio juntamente com a bebida: O pai de Clara estava no mesmo aplicativo que Cândido, com uma foto de perfil muito mais formal do que a vista pessoalmente. Cândido se permitiu mais um gole violento daquilo que estava tomando e teimou consigo mesmo que já havia visto essa mesma foto antes. Pôs sua mente para trabalhar por alguns minutos, até que o insight estava finalmente formado. A última vez que viu a foto e o perfil foi na própria casa de Clara, quando ela tentou apresentar Cândido aos pais. Se encontrava tão atordoado com o luxo e imensidade da mansão que não prestou atenção nos mínimos detalhes que aquele episódio lhe trazia.
Antes que chegasse a qualquer conclusão, uma pessoa chegou por detrás de Cândido e perguntou algo que ele não pôde decifrar devido ao som alto e ao vocabulário local. Quando ele se virou para perguntar se a pessoa podia repetir o que havia acabado de dizer, ele foi surpreendido por um beijo que o fez esquecer de que estava no Espectro ouvindo a voz de Gloria Gaynor entoar os versos “Oh no, not I! I will survive! Oh, as long as I know how to love, I know I’ll stay alive! I’ve got all my life to live, I’ve got all my love to give! I will survive, I will survive!”